Cronicas
A grande viagem
Jacira Fagundes
Li outro dia um texto de autoria desconhecida intitulado A certa. Trata de tema bruxuleante, funesto, um lance certeiro na mosca, aliás, a mosca é cada um de nós. Porque o autor evoca nada mais nada menos do que aquela, a da face cruel, a que não está para brincadeiras, a que sempre acerta a pontaria, a que nos leva para a grande viagem, para o descanso eterno, e a gente nem pediu. Ela mesma, a própria.
O sujeito escreveu o texto fazendo-se de sonso, parece não estar nem aí. Mas eu poderia afirmar que está, porque ela, afinal, é a única certeza nesta vida cheia de incertezas. Vai ver, estamos tão acostumados com o incerto da vida que a coisa certa nos perturba. A cada final de ano, brindamos, enviamos votos de paz, amor, saúde e felicidade. Desejamos um novo ano radioso e próspero para todos, indiscriminadamente. Ingenuidade. Quem não sabe que isto não vai acontecer assim cem por cento? Ficaremos felizes se a dita cuja não fizer ameaças logo ali na entrada do ano e, pelo menos, deixar-nos garantir o gozo das férias planejadas na dureza. Ou se nós mesmos, e ainda pais, irmãos, filhos, netos (já é o bastante), nos fingindo de mortos, conseguirmos manter distância da mira dela.
Eu, por exemplo, procuro ser modesta quanto aos pedidos de virada de ano. Você sabe, aqueles velhos conhecidos paz, amor, saúde, dinheiro. Se forem muitos, vá que na substituição de uns pedidos por outros, a morte não hesite e faça das suas e se apresente poderosa, sedutora, íntima, insistente? Sabe-se lá. Antes a satisfação de pouco do que de nenhum.
Tem gente aí fazendo os maiores sacrifícios para não encarar a partida. E ficam driblando aqui e ali, passando a bola para outros que talvez nem estivessem na fila. Suponho.
Incertezas. É com isto que estamos habituados. E com torcidas. Torcemos para que nosso time vença o campeonato, que nosso filho passe no vestibular, que seja nossa a única vaga no concurso, que o companheiro nos seja fiel, que este relacionamento, afinal, se instale de vez, que tenhamos sucesso na carreira, e por aí vai. Somos bons nisso. Também costumamos ficar na torcida em momentos bem prosaicos. Tomara que o meu post no face tenha uma infinidade de visualizações, e queira Deus que a carga do celular dure até o fim da viagem, e que este vestidinho ainda sirva agora que parei a dieta, e que eu acerte as seis dezenas da mega, e que nesta viagem à Escandinávia eu encontre, de verdade, minha alma-gêmea. Ufa!
Banalidades que nos fazem sentir a delícia da vida fluindo. Na incerteza, sim. Onde não vislumbramos paradas, limites, interrupções, interferências. Onde focamos o olhar num futuro sempre belo, luminoso, fugaz, mas grandioso. Na incerteza nada é para sempre. A gente não se importa com a perenidade, nos sabemos perecíveis. Um dia o amor acaba, a grana encurta, a saúde fica abalada, e no outro dia, um outro amor nos surpreende, um empréstimo nos tira do sufoco, a ciência nos oferece uma mãozinha.
Até o dia em que aquela que nos ronda cansa deste esconde-esconde e nos convoca para o enfrentamento. Soa o apito, o juiz sinaliza que o jogo acabou. Só nos resta sair de campo e empreender a grande viagem.
Sem retorno? Sem uma nova chance? Tomara que não.
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